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quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Revolução Réstia- Parte II




              Aos domingos pela manhã um torneio de futebol de 7 na Vila Barranco costumava agitar os ânimos dos munícipes. Todas aquelas jogadas ríspidas e desleais onde abundavam cotovelaços, beliscões e mata-cobras excitavam os torcedores sempre dispostos a colocarem lenha na fogueira:

- É êssi! É êssi! Dali no meio dêli qui êssi tá merecendo!
- Tem qui chegá junto Vadinhô! Qualé?! Vais tirá u pezinho fora?

            Até mesmo nas manhãs frias do inverno gaúcho os atletas não se privavam de suas atividades futebolísticas, amenizando a baixa temperatura com doses puras da cachaça Vulcano, a mais comercializada e barata da região. Sob o efeito do álcool e outros aditivos, muitos deles transformavam-se em verdadeiros tanques de combate prontos á derrubar e amassar no chão qualquer adversário, ocasionando, não raras vezes, fraturas expostas nos membros inferiores das vítimas.
            Cléverson, um descendente de índios caingangues e atacante do Sem Frescura F. C. declarou-se certa vez abismado com a relação do homem branco com a poderosa planta de seus ancestrais pajés. O bugre confessou que dava os seus “peguinhas”, contudo desaprovava o uso descriterioso que seus amigos civilizados faziam do “Cachimbo da Paz”.
                                                     
            O campo ficava exatamente nos fundos do pátio de Teixeira, que confessava-se irritado com toda aquela gritaria e foguetórios agredindo-lhe os ouvidos. Sua erudição fazia-o odiar todas essas manifestações populares. Sentia-se na verdade como um Lorde, um Gentlemam no meio daqueles simplórios. Apesar da modesta escolaridade (cursara até a 5ª séria do 1º grau) era um homem dado à leitura e aos bons hábitos que, ao menos externamente, tornam o homo sapiens um ser civilizado. Conseguia manter a classe nas mais conturbadas situações que a convivência com os nortenses lhe impunham. Nas discussões, falava claro, pausadamente, olhando sempre profundamente nos olhos do oponente, defendendo as suas idéias centro-esquerdistas com a convicção de um monarca, mesclando nelas algumas visões distorcidas da realidade social. Em certas ocasiões adotava posturas extremamente radicais para demonstras sua indiferença frente a costumes arcaicos que presenciava.
          Quando tinha apenas cinco anos de idade os seus pais descobriram a aversão que ele sentia por personagens fictícios, quando na festa da Chegada do Papai Noel organizada pela Associação de Senhoras do Crochê (ASC), desferiu um tapa certeiro na face esquerda do bom velhinho, que tentou depositar um ósculo na sua testa. No ano seguinte chutou com uma força descomunal para a sua idade as canelas de uma funcionária do Varejo Comprão caracterizada como coelhinha da páscoa, que dançava meio constrangida a tradicional modinha que tocava nos auto-falantes instalados nos quatro cantos do prédio:
  
                                        “Coelinho da Páscoa o que trazes pra mim
                                              Um ovo, dois ovos, três ovos assim.”

            Shirley pediu ás contas logo que saiu do seguro previdenciário, pois não agüentava mais os seu patrão, Anacleto Braga, que entre tantos empregados à disposição escolhia sempre ela para encarnar os personagens das festas criadas pelo comércio como a própria páscoa, o natal, o dia das crianças, o dia dos namorados e outras apelações do calendário. Segundo a moça, que era uma pessoa bastante introvertida, as imposições tornaram-se insuportáveis. Até mesmo em dias ensolarados, de extremo calor, a ordem expressa era vestir a fantasia da vez e requebrar-se, sempre sob a ameaça do chefe.  Felizmente, logo que ele, ainda meio perplexo, deu baixa em sua carteira profissional, conseguiu ela uma vaga na Loja da Dinda, estabelecimento bem mais comprometido com a saúde psicológica dos funcionários.

- Tu já sabia qui a Shirley saiu du imprego qui ela tava?
- Saiu? Já fazia uns seis anos e ... 4 mês qui ela tava nele... Aquela sempre foi batalhadora... Em compensação a irmã dela...
- É mesmo Ruth, qui guria malandra! Gosta muito é di si socá na casa dus vizinho. Já vi ela entrá im todas as casa aqui da quadra.
- Qui horror! Em vez di í fazê ficha nas loja...
- Lívia, terça-feira passada, di noiti, eu vi u teu marido... Fazia tanto tempo qui eu não via êli... Como tá magro... Só conheci êli pur causa du boné azul cum u brasão bordado im amarelo formando u leme dum barco cuma  âncora no meio, bordada im vermelho. Aliás, ondi êli comprô aquêli boné? Eu quiria dá um pru meu afilhado... Aaah, também reconheci êli pur causa dus tênis branco cum duas listra preta du lado i uma bola di futibol desenhada im cada pé. Eu vi qui a du lado esquerdo já tava meio desbotada... Foi aí qui eu mi dei di conta qui era u Élber.
- Ah é? I êli ti viu?
- Acho qui não. Êli tava tão distraído conversando cuma moça qui tava di costas... Tavam ali perto du Quartel lá pelas 9:17 da noite...
- Ah sim, eu mi lembro. A moça era eu.

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              Teixeira sabia que aquela cidade precisava de uma sacudida muito forte para deixar de ser uma incubadora de tolices. Os interesses mesquinhos dos políticos irritavam-no bastante, sendo que era daquele município o infeliz título de Cidade Nepotista. Ninguém fazia nada de concreto para mudar o panorama. Lamentações não faltavam, contudo, tal como um cão exibido que ladra apenas estando protegido em seu pátio, não enfrentavam o inimigo frente a frente.
            Foi nesse clima cheio de farsas, hipocrisias, bajulações e submissão que eclodiu a revolta mais significativa da história contemporânea do povo gaúcho. Liderados por Airton Amarante Clêncio Kurts de Braz Teixeira, os cerca de 11 rebeldes recrutados nas mais diversas facções da sociedade nortense azucrinaram a vida do demagogo prefeito Adinelson Bulhões, eleito por dois mandatos consecutivos, sempre no 1º turno das eleições que disputara contra a oposição, que apresentava-se essencialmente fragmentada e sem qualquer concreto poder de reação. “Adi”, como era conhecido, auto-definia-se como um homem de origem humilde e conhecedor dos mocós e quebradas onde habitava o eleitorado, no entanto, contra-cheques e extratos bancários de décadas atrás sugeriam uma tranqüila situação financeira na família Bulhões já há algumas gerações. Seu pai fora um dos maiores proprietários de barcos pesqueiros da região, atividade que, distorcidamente, serviu de alavanca para as suas campanhas, nas quais proclamava-se “Adi Pescador”.
            Qualquer minuciosa investigação em suas 2  gestões na Prefeitura apontariam fatalmente para diversas improbidades administrativas, motivo óbvio para um processo de cassação de mandato. Um abaixo assinado organizado pelos oposicionistas do PC (Partido do Contra) correu de mão em mão pelos becos, favelas e cortiços da estreita cidade litorânea. Infelizmente a omissão acabou superando o inicial entusiasmo dos idealizadores. Apenas 19 almas vivas tiveram a coragem suficiente para assinarem sem medo das represálias aquele importante documento de protesto que sugeria a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as irregularidades na construção dos banheiros destinados aos membros do Executivo Municipal, uma velha reivindicação que segundo o próprio prefeito não mais deveria esperar. Segundo ele “fazer as necessidades” era um direito básico daqueles que administram. As instalações sanitárias, até então, eram ainda arcaicas para uma década já informatizada, funcionando no método dos “cabugos”, onde todo o material evacuado pelos aparelhos digestivos dos funcionários era despejado em tonéis (os cabugos propriamente ditos) ficando à espera dos cabungueiros, que faziam a coleta de 2 em 2 dias, exceto nos sábados, domingos e feriados. A obra, no entanto, tornou-se superfaturada, sem qualquer transparente prestação de contas à comunidade, que só teve conhecimento do rombo aberto nos cofres públicos através do jornal alternativo “A Pilha”, semanário editado por Mônica Aldrighi, uma das ativas militantes da Brigada de Libertação Nortense.
            A BLN nasceu do descontentamento de alguns pensadores locais com a política adotada por Adinelson, que tão logo foi informado por um caguete ligado ás bases do movimento rebelde convocou a Guarda Municipal para um exercício de prontidão. O QG dos rebeldes inicialmente situou-se nos fundos da Tabacaria do Zezé, contudo o próprio proprietário do estabelecimento e pai de Gelsinho, foi quem deu de bandeja pro prefeito a rapaziada. Por esse motivo foram obrigados a transferir a sede para a residência de Teixeira, local bem mais amplo, discreto e melhor adaptado às necessidades de um grupo clandestino. 
              Zezé, não satisfeito com sua 1ª caguetagem tentou ainda por diversas vezes rastrear os passos do filho nas noites de reunião, no entanto o rapaz sempre conseguia despistá-lo na zona de meretrício ou bocas de fumo, lugares que o seu puritanismo exterior fazia-o isolar. Sabia de cor cerca de 1.500 versículos da Bíblia, no entanto o seu coração era mais duro que granizo bruto. Quis sem sucesso incutir em Gelsinho a sua mentalidade retrógrada, porém o rapaz acabou conhecendo algo que influenciou-o decisiva e ideologicamente: O rock’n´roll.


                                                                   (Segue)


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