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domingo, 3 de setembro de 2017

Revolução Réstia- Parte I



Os próximos parágrafos tratam-se de uma raridade. Foram extraídos do meu 1º livro publicado, Utopias Papareias de 2007. Pra quem me conhece tão somente como o consagrado escritor de "O Grande Pajé" vale a pena conferir como tudo começou...

                     
                        REVOLUÇÃO RÉSTIA



"Descendo de uma raça que se distinguiu, em todos os tempos, pelo seu temperamento imaginativo e facilmente excitável. E desde a mais tenra infância dei prova de ter herdado por completo o caráter da família. À medida que me adiantava em anos, mais fortemente se desenvolvia ele, tornando-se, por muitas razões, causa de sérias inquietações para os meus amigos e de positivo dano para mim mesmo. Tornei-me voluntarioso, afeto aos mais extravagantes caprichos e presa da mais indomáveis paixões. Espíritos fracos e afetados de enfermidades constitucionais da mesma natureza da que me atormentava, muito pouco podiam fazer meus pais para deter as tendências más que me distinguiam. Alguns esforços fracos e mal dirigidos resultavam em completo fracasso da parte deles, e, sem dúvida, em completo triunfo da minha. A partir de então, minha voz era lei dentro de casa e, numa idade em que poucas crianças deixaram as suas andadeiras, fui abandonado ao meu próprio arbítrio, e tornei-me em tudo, menos de nome, o senhor de minhas próprias ações.”


            A auto análise acima transcrita, extraída do livro “Histórias Extraordinárias” de Edgar Allan Poe, descreve fiel e minuciosamente a infância do célebre personagem da história alternativa do Rio Grande do Sul, Airton Amarante Clêncio Kurts de Braz Teixeira, natural de São José do Norte, um pequeno município economicamente sustentado pela pesca e o cultivo da cebola.
            Muitos detalhes da sua vida ainda hoje permanecem em total obscuridade, entre eles o meio pelo qual obtinha ele a sua subsistência. Sempre que indagado á respeito, limitava-se a responder:

- Eu vivo de rendas.

            A resposta, tão vaga e abstrata, decepcionava profundamente os “repórteres populares” e estimulava a imaginação de alguns:

- Mas u Texêra afinal, faz u quê da vida?
- Olha, u Tuco, filho da Nadir, disse qui êli mexi cum droga.
- Aaaaaah... Só assim mesmo pra si mantê du jeito qui êli vive. Bem qui eu sempri achei cum cara di maconhêro uns cara qui vem na casa dêli as quarta di tardi, pur volta das duas i meia e vão imbora só lá pelas oito i dez... oito i quinze mais ou menos...
- Mas isso aí já é ôtra história... A Kika, sogra do Vládi, falo qui pareci qui êli mexi cum as coisa du capeta i qui até judiaria cus bicho êlis fazim lá dentro... Levam coelho, pato, pombo i até filhotinho di cachorro pra judiá dus animal.
- A genti trabalha, trabalha i trabalha, mas nunca consegue comprá as coisa qui a gênti qué, mas um excomungado, sem vergonha, vagabundo dessis tem tudo du bom i du melhor. Como é que pode?
- Mas dêxa qui u qui é dêli tá guardado... Qualquer hora apagam êli... Ô cumadre! Esse chimarrão vem ou não vem?
- Calma cumpadre, to isquentando bem a água... Essis dia eu fui tomá chimarrão cum a Norminha e tu acridita qui a mulhé mi serviu cum água fria? Não é querê falá mas eu não suporto chimarrão frio...
- Ah, nem eu.
- Mas não querendo interrompê o assunto di vocês, como é qui essi tal di Texêra faz pra discontá a aposentadoria? Será qui êli paga u carnezinho aquele?
- Olha, um infeliz dessis, si ficá entrevado im cima duma cama ninguém vai querê cuidá dêli. É todo metido a Doutor, a magnata, mas na hora du sufôcu vai é apodrecê numa cama.
- Shhh, shhh! Ali vem êli... Opa! Grandi Texerão! Cumé qui tá neguinhô? Cumé qui vai essa força?   

                                              ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


            Alheio á todas as mesquinharias da plebe e confinado a maior parte do tempo em seu sobrado cinza azulejado, Teixeira, descendente de nobres germânicos, conservava ainda traços de uma educação erudita, nos moldes tipicamente europeus. Entre os seus hábitos preferidos estavam as caminhadas vespertinas das segundas, quintas e sextas-feiras, o chá diariamente tomado ás dezoito horas quinze minutos e trinta segundos, a degustação de iguarias da culinária sueca trazidas nas noites de sábado por um mercador de sorriso fácil, mais cínico que um gato ao deixar-se afagar apenas para arranhar a vítima de perto.
            Possuía uma extensa biblioteca com muitos volumes em latim, entre os quais destacavam-se: “Decamerão” de Giovanni Boccacio, “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel e “Eneida” de Virgílio. Contudo, descobriu-se posteriormente que tal língua lhe era tão familiar quanto o idioma hebraico o  é para os favelados da Baixada Fluminense. Os títulos que lhe faziam a cabeça, na verdade, eram “A felicidade depende de você”, “A arte e a técnica do beijo”, “Bola de sebo”, “Memórias de Gertrudes, a devassa” e os infantis “O jacaré assustado”, “O capinxo feliz” e “O elefante velho”. Seu livro de cabeceira era “O Vampiro”, de Britney Snipes.
             Era, no entanto em sua videoteca que materializavam-se os traços mais intrigantes em seu caráter. Produções cinematográficas como: “Capitão Maclau’d na ilha das ninfas selvagens”, “A festa do cabide”, partes I e II, “Orgias no cemitério”, “Luxúria, o filme” e “Sacanagens sem limites”, contradiziam toda a sapiência que supostamente adquirira através da cultura livresca.  
            Certa vez a rapariga mais rodada da vila resolveu conhecer os CD’s de Bossa Nova que o introspectivo e reservado intelectual afirmava ter. Como era uma sacana, imaginou tratar-se apenas de mais uma aventura erótica, contudo, confessou mais tarde que, pela 1ª vez em sua vida, corou as faces diante de propostas tão absurdas pronunciadas ao pé do seu ouvido. Segundo ela, Calígula pareceria um colegial inexperiente em comparação com tal homem.
            Várias tentativas fez ele buscando abrandar os seus instintos, contudo a televisão, com sua programação essencialmente erótica, encarregou-se de minar as expectativas.  
            Apesar disso, tal fraqueza pessoal não impedia Teixeira de figurar entre as 10 pessoas menos ruinzinhas do povoado. A maior parte das asserções que pairavam a respeito dele eram inverídicas e caluniosas. Provavelmente a sua conduta, bastante reservada, era o estopim da ira popular. Incomodava-os o simples fato daquele culto cidadão não tomar parte nas fofocas habituais, confinando-se no conforto do seu lar enquanto eventos tradicionais como A Quermesse do Padre Tito (de 13 a 16 de maio), o aniversário de Vó Zulma (4 de setembro) e a Festa do Engenho Roçado (no 2º domingo de novembro) aconteciam num frenesi total, regado á álcool, sambanejo e muita conversa fiada.
            Em São José do Norte existiam também espaços alternativos para a galera jovem, principalmente à moçada do rap. Alguns deles protagonizavam a cada final-de-semana pancadarias bárbaras que tingiam de sangue as calçadas vizinhas ao ‘Black Nigger Club”. Sob a batuta do conceituado D.J. Cavalo e seu enteado, Mano Piva, a boate nutria com bastante peso todos aqueles ouvidos ávidos por hip-hop. Galeras da vizinha cidade histórica de Rio Grande, onde situa-se entre tantas preciosidades a maior praia do mundo em extensão (Praia do Cassino), uma das mais ousadas obras arquitetônicas destinadas à navegação (Molhes da Barra), a agremiação futebolística mais antiga do país (S.C. Rio Grande), o porto marítimo do Mercosul e a reserva ecológica do Taim, vinham balançar o esqueleto transportadas pelas lanchas de transporte coletivo hidroviário que realizavam a travessia do Canal Miguel da Cunha na Lagoa do Patos, em aproximadamente trinta minutos. Até mesmo ali, no suave flutuar das embarcações, gangs rivais degladiavam-se sem qualquer temor ao misterioso território de Netuno (conforme reza a mitologia grega). Por motivos banais como um simples esbarrar ocasional dentro do salão, socos, pontapés, navalhaços e tiros decidiam quem eram os mais porradas da área. Os confrontos faziam parte da adrenalina da festa e tal como cães raivosos, rosnavam ao simples olhar de um desconhecido.

- Qualé meu? Vais incará muito? Eu tenho uma coisa aqui na cintura pra ti...
- Si eu tivéssi medo di faca eu não cumia churrasco...
- Ah é? Aí Duda, dá u tóqui prus guri qui tem uma bronca pra nóis.
- Só... Vâmo rebentá essi otário.

            As rixas envolviam elementos de bairros distintos, preocupados única e exclusivamente em confirmar a supremacia física e o status de valentões sanguinários.  Alguns, no retorno a seus territórios, cambaleando sob o efeito de substâncias impróprias e ás vezes retalhados e cheios de hematomas no corpo, ofereciam um nada agradável espetáculo aos olhos dos demais passageiros. Insaciados ainda por arruaça infernizavam a vida do cobrador de ônibus que levantara ás 4h e 30 minutos do domingo, privando-se de horas a mais no aconchegante calor do lar, onde mulher e filhos dormiam ainda como cutias á espera do belo sol matutino para despertarem.

- Aí galera, olha só... sênti só essa batida: Si essa pôrra não virá, olê, olê, olá/ Eu chego lá ah.
- Agora assim ó: Hu, hu, hu!/ U cobrador é pau nu cu! Vâmo lá, vâmo lá gurizada!
- HU, HU, HU! U COBRADOR É PAU NU CU!
- CRÁS! PÓFT! BUFT! PLÁFT! Vâmo arrebentá cum essa merda aqui!
- Heeeeeeeeeê, huuuuuuuuuu! Não dá nada gurizês... Tâmo chegando na área...
- É isso aí motora, não olha muito meu... Dale pau nessa carroça véia.
- É u siguinti... a gênti é um problema social/ Não mi leva a mal/ Nós sômu marginal.... Vâmo detoná êssi sistema fudido... Heeeeeeeeê, huuuuuuuuuuu! Vâmo azuerá! Si tu chupá bala vâmo ti mandá.
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            Em suas raras madrugadas de boemia Teixeira não trocava por nada nesse mundo o Bar Tok, onde ás sextas-feiras o renomado intérprete e instrumentista local, Lázaro Bigorna, costumava animar o ambiente acompanhado por seu grupo Rebentos da Lua, desfilando verdadeiros clássicos do tempo das serestas. Nomes como o de Ataulfo Alves, Lupicínio Rodrigues e Orlando Silva eram presenças certas no repertório do conjunto, mesclando-se ás vezes a composições da atualidade com forte apelo comercial. Se essa atuação eclética por um lado garantia-lhes o contrato e os aplausos da massa, por outro denegria interiormente a consciência de cada componente. Possuía, cada uma deles, uma refinada bagagem musical, sentindo-se profundamente constrangidos ao acompanharem com seus valorosos instrumentos versos nada profundos como:

                               “Vamos sambar a,a, a,a,a,a,
                                 Traga mulher, é, é, é, é, é,é
                                     Estou aqui, i, i, i, i,i, i,
                                     No tororó, ó, ó, ó, ó, ó, ó, ó
                                    Vem de buzú, u, u, u, u, u, u. u”


            Ou:

                                “Todo mundo de olho, de olho, de olho, de olho, de olho
                                      Na mina do cara, do cara, do cara, do cara, do cara



            Lázaro certa vez confidenciou a um amigo íntimo que sentia-se como uma meretriz, adequando mercenariamente o estilo do conjunto às exigências daquele “bando de simplórios” que iam escutar-lhes e consumirem bebidas alcoólicas, dando lucro ao proprietário do estabelecimento. Como justificativa para a sua conduta usava as muitas despesas domésticas em que estava enredado, entre as quais destacavam-se: o sustento do genro, da filha e dos dois netos que moravam nos fundos da sua casa e a pensão que desembolsava mensalmente para o Tio Acílio, que judicialmente, baseando-se nos princípios legais, resolveu sugar algumas cédulas do sobrinho após estudar minuciosamente o Código de Processo Civil (CPC).

Art. 396- De acordo com prescrito neste capítulo podem os parentes exigir uns dos
                  Outros os alimentos de que necessitem para subsistir.

Art. 397- O direito á prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos e
                extensivo a todos os ascendentes recaindo a obrigação nos mais próximos
                em grau, uns em falta de outros.



Art. 398- Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a
                  ordem de sucessão e faltando estes, aos irmão, assim germanos como
                  unilaterais.

Art. 399- São devidos os alimentos quando o parente que os pretende, não tem
                  bens, nem pode prover, pelo seu trabalho, a própria mantença, e o de
                  quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao
                  seu sustento.



            Acílio teve ganho de causa decretada pela Exma. Sra. Dra. Juíza de Direito da Vara de Família da Comarca de São José do Norte, Angelitta Brum.
            Aos gastos já mencionados juntavam-se ainda as despesas domésticas, nas quais a sua esbanjada mulher, Selminha, contribuía decisivamente, desperdiçando água, luz, telefone, gêneros alimentícios e produtos de limpeza.
            Mesmo com tantas bocas agarradas ás suas tetas, Lázaro conseguia manter-se razoavelmente bem, o que gerava nos companheiros uma certa perplexidade. O cachê que ganhavam passava primeiramente pelas mãos do líder fundador do conjunto, que após trancafiar-se numa saleta aos fundos do bar reaparecia com os pequenos maços de dinheiro já criteriosamente separados para o pagamento. O único que atreveu-se a contestar tal método foi o ex-integrante Ênio do Cavaco, um velho desconfiado, azedo e perfeccionista que durou apenas duas semanas e meia no conjunto, sendo banido após acirrada discussão na qual, servindo-se de palavrões, exigiu uma participação maior no faturamento líquido dos shows.

                          (Segue)

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